APRESENTAÇÃO
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Olhando certas pessoas, inveja-me (sim, não tenho a menor preocupação em dizer isto) da capacidade destas em recuperar as coisas vividas e sentidas. Pois sei que não tenho tamanho dom. Sei que jamais conseguirei potencializar o meu imaginário a ponto de verbalizar cenas e fatos com tanta exatidão.
Sei que a temporariedade expressa em qualquer texto (seja subjetivo ou não, seja verso ou prosa, seja crônica ou conto), acaba extrapolando com o que se quer passar, acaba por dividir, por dispersar, por fragmentar, em vez de unir, condensar, restaurar aquilo que é contado; já que as memórias escritas dão ao texto pouca garantia de realidade, pois são vivenciadas, sobretudo, pela inventividade.
Quando me deparei ante a árdua, necessária e sacrificante tarefa de escrever o “Embrião e a configuração do mistério”, foi como se o tempo (e a própria temporariedade do tempo) despejasse em mim, com precisão de habilidoso arqueiro, dardos venenosos em minha alma. A estruturação de minha memória ainda não estava no ponto. Muitas coisas estavam infindas. Umas, pelo deslumbramento de se viver a cada dia um dia diferente e outras, pela própria necessidade humana de se esquecer do desdobramento da vida.
Por isto a tamanha hesitação. Mas, lembrando-me (o lembrar e o esquecer é coisa natural, vem e vai, entra e sai, permeia e desaparece) que Pedro Nava disse: “Escrever memórias é libertar-se, é fugir. Temos dois temores: a lembrança do passado e o medo do futuro.
Pelo menos um, a lembrança do passado é anulada pela catarse de passá-la para o papel”, logo vi-me acorrentado à necessidade de escrever este livro. Logo me deparei à obrigatoriedade de passar para o papel, mesmo que em parcas páginas e pobres versos, algumas experiências de vidas que vivi ao lado de mamãe.
O embrião e a configuração do mistério me levaram a um esforço de memória que jamais quis. Muitas coisas estavam esquecidas, ou ao menos, deixadas de lado. Resgatá-las, dá-lhes vida, vesti-la de novos argumentos, foi tarefa difícil e perigosa. Poderia muito bem cometer equívocos, erros, pois a memória de um poeta tem lapsos irreparáveis.
Contudo, o livro saiu e confesso, caro leitor, não é um dos melhores, é enfadonho, rebuscado, tem um andar muito lento. Possivelmente o acharás monótono e desnecessário.
Quem sabe, caro leitor, com toda a liberdade que tens, lerá apenas a primeira e a última página e acharás (com toda razão) que terá lido mais do que suficiente. Este livro foi feito mais para o meu travesseiro que para os vossos olhos. No entanto, ainda tenho uma vaga esperança que alguém (posso até supor quem seja, já que os meus leitores não passam de cinco, no máximo dez) possa tecer algo de bom sobre ele. Possa entender a minha extrema necessidade de escrevê-lo, necessidade essa que vem não apenas para mim, mas a outros tantos poetas que vivem escondidos por detrás de birôs e papeis contábeis.
Novamente confesso: este livro me trouxe uma tremenda dificuldade. Afinal, a memória de um homem é feito labirinto, tem múltiplas possibilidades e uma só saída. Rastreei a minha vida, revolvi a terra, o sulco, o entulho das coisas inúteis, e me deslumbrou, por resto, o que narro neste livro. Muitas outras coisas (ou fatos) ficaram para trás. Muitas outras estórias apareceram quando o livro estava findo, copilei em folhas avulsas para o meu próprio deleite, para o meu próprio contentamento.
Escrever memórias é tarefa dúbia: não se sabe onde começa a lembrança e onde finda a ficção. Mas digo, com toda a verdade de minha alma, os nomes são fictícios, algumas passagens (pela liberdade poética que por direito me é dado) também são. Mas eu e minha mãe sabemos o quanto de verdade está contido nestes versos, pobres versos de “O embrião e a configuração do mistério”.
Alufa-Licuta Oxoronga
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Fragmentos do livro. Páginas. 135-138. Parte VI – Mês
(Livro escrito quando fiz 20 anos de idade. Todo escrito em soneto narrativo. Formato que, segundo um amigo crítico, é singular à obra alufariana, pois não há divisão, a leitura se desenvolve como se fosse um só soneto. O livro conta com 230 páginas. Para uns, uma provocação. Para outros, tarefa enfadonha. O livro é dividido em ciclos gestacionais. A trama se desenvolve do primeiro ao nono mês. Tendo mais duas partes “Trabalhos de Parto” e “Parto”, finalizando a obra. Concluindo com um epílogo intitulado “A confirmação do mistério”.)
(…)
Manhã e tarde, noite e dia;
pela frente, longa estrada.
(Qual vaqueiro de boiada
que faz da noite sua lã macia,
sem uma fé que alivia)
fiz do chão minha pousada.
E tendo o céu como morada
e companheiro o dia-a-dia,
diante de uma grande casa
tardei um pouco o meu caminho,
perdi ao dono um pouso, uma pausa:
-Se achegue (disse-me um velhinho
com seu mistério de vasa,
ou pá de velho moinho)!
Conversa solta, noite alta,
mesa, vinho e farta janta.
-Meu senhor, e a dor tanta
de alguém não sentir falta;
não causa uma imensa pauta
sem te alguém que se encanta
quando deita ou se levanta
ou para acalmar a dor que assalta?
-Ouça bem o que vou falar:
tive netos e tive filhos
que hoje vivem em outro lar.
Cansei-me buscando trilhos
até que encontrei neste lugar.
-em meio à terras e aos milhos-
a resposta mais definitiva
para minha vida em tormento.
E se antes era só um intento,
hoje, em minha mente criva
o que em ti ainda dança e deriva.
-Meu senhor, é neste vento
que faz parte o firmamento
que esconde, tinge e “triva”
a dúvida interna da gente?
-Leva o homem de partida
um destino bem diferente
de sua jornada já cumprida,
para que ande sempre em frente
e descubra a própria vida.
-Meu senhor, e se a aventura
violar a minha alma
como irei manter a calma?
E se um dia, por ventura,
nesta jornada que é dura,
meu corpo sinta a sua palma
e ao chão, em dor, se espalma?
-Talvez, filho, a tua procura
esteja próximo de tua mão.
-Vou dormir, meu bom senhor;
pela manhã correrei chão.
-Ouça mais: a tua dor
é a distância que o sertão
sofre e sente do lavrador.
OXORONGA, Alufa-Licuta. O embrião e a configuração do mistério. p. 135-138. Redenção. 1986.